Saiu na imprensa: Detentos comemoram a retomada de outra vivência

22 de março de 2011 - 03:00

Aconteceu há pouco tempo um momento histórico para a Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto, a CPPL II, em Itaitinga: a retomada de mais uma rua do presídio. A transformação foi vivenciada de perto pela equipe. A rua E (ou vivência, pavilhão, outros nomes para a mesma estrutura) – suja e tomada pelo mau cheiro – foi “invadida” pelos detentos das alas pacificadas que, em mutirão, começaram a mudança. Vassouras, rodos, panos e muito sabão foram as armas para o combate inicial.

Os presos se dividiram entre as 26 celas para, inicialmente, identificarem os locais em que os outros detentos tinham deixado as “tocas”, locais escavados que serviam para esconderijo de armas, drogas, celulares e outros objetos proibidos dentro da unidade prisional. As tocas eram escondidas por debaixo de colchões, nos cantinhos das paredes e, geralmente, cobertas por um pequeno bloco de cimento, que disfarçava a escavação.

As celas tinham sido antes visitadas por agentes prisionais, mas os detentos “da paz” conheciam as artimanhas dos colegas. Muitos deles já estiveram ali antes. “Olha só… Debaixo do beliche, no teto do beliche, sempre são feitos buracos para a retirada de pedaços de ferro que estruturam a construção da cela. Se a gente procurar, encontra muito cossoco”, conta Felipe Eugênio Pinho Pereira, um dos detentos que ajudava no trabalho. Enquanto conversava com a equipe, Felipe achou dois cossocos e entregou à diretora Keydna. “Não falei que tinha?”, sorri.

Na cela de número 13 da rua E, um detalhe chama a atenção. Inscrições bíblicas foram cuidadosamente recortadas – letra por letra – em sabonetes. Em toda a cela existem mensagens de paz. “Nesta cela aconteceu um homicídio, em 25 de outubro de 2009. Francisco Welington Sousa Alves foi a vítima. Ele foi espancado na cela e faleceu. A morte, talvez, justifique as mensagens de paz”, avalia a então diretora Keydna Carneiro.

Para serem os novos habitantes da rua E – o primeiro passo para a pacificação do outro lado do presídio – o pastor Luís Marques de Sousa do Lago, natural de Brasília e condenado por envolvimento em roubo a carro-forte no interior do Ceará – escolheu 86 presos. “São homens já com uma boa vivência na luz, na paz. São homens que confiamos que são de bem, preparados para levar a palavra de Deus aos outros que teimam em permanecer ´do outro lado´. Escolhemos cada um pela vivência no projeto e pelo testemunho”, conta.

Luiz exemplifica a ordem no lado pacificado da cadeia. Ele é o dirigente geral das vivências A, B e C, onde ficam os evangélicos. Segundo ele, depois da limpeza física é iniciada uma “limpeza espiritual” nas alas retomadas. “Consagramos o lugar”.

Outro detento que participava do mutirão era José Roberto Sousa Ferreira, 33. “Destruí muitas vidas por meio do tráfico, do roubo. Agora, estou completamente transformado, me sinto um novo homem. Vivo para minha família”. O reconhecimento da condição delitiva e o arrependimento são características comuns entre os participantes do projeto. “Eles deixam a raiva de lado e aceitam a punição imposta a eles pelo Estado. Os conceitos mudam”, avalia Keydna.

Depredação – De cela em cela da rua recém-conquistada, pode-se observar a depredação provocada pelos antigos moradores. Janelas de ventilação com tamanho menor depois de terem sido constantemente danificadas pelos presos e restauradas pelo Estado, tanques d´água (de onde sai a água do banho e para limpar as celas) destruídos, bojos (espécie de sanitário no chão) sujos, entupidos. Diante da cena de destruição, surge um voluntário. “Eu sei mexer com essas coisas, doutora. Posso trabalhar como voluntário para restaurar os tanques”, manifesta-se. Keydna, mais do que depressa, toma nota do material necessário. “É assim. Todo mundo ajuda com seu talento”.

O trabalho não estava ainda na metade quando duas barras de ferro grandes e 10 pequenos cossocos tinham sido encontrados dentro das celas. E no fim daquele dia, o piso de um dos corredores de entrada da vivência estava tomado por pedaços de ferro. Eram objetos que estavam escondidos para, um dia, serem utilizados como armas. “Imagina quanta coisa ruim evitamos com essa apreensão”, diz a então diretora.

” O projeto tornou a cadeia mais humana”, diz agente – O trabalho de “retomada” de mais uma rua da CPPL II foi acompanhado, com tranquilidade, por agentes penitenciários. Eles participaram da busca das armas com os detentos do projeto Renascer, numa convivência harmoniosa, sem olhares de intimidação.

Em geral, a convivência entre detentos e agentes penitenciários é problemática em cadeias pelo País, dada a tensão instalada pela possibilidade sempre existente de uma rebelião. “Há uma mudança de pensamento entre os próprios agentes que assistiram a toda essa transformação. Estamos mudando paradigmas”, ressalta Herlano Macieira, que era o diretor adjunto à época da reportagem e assumiu a direção da casa de custódia quando Keydna Carneiro foi convidada a ocupar outro cargo na Secretaria de Justiça, no início deste ano.

Francisco Wagner Cesário, de 37 anos – dos quais três são dedicados ao sistema penitenciário – percebe essa mudança. “O projeto Renascer, além de ser um projeto voltado para a pacificação e a mudança do preso reflete, diretamente, nas atividades diárias na cadeia e no próprio serviços dos agentes penitenciários, que trabalham com menos estresse e esgotamento. Percebo que, aqui, trabalhamos com mais segurança, por conta da confiança que foi construída. Isto é bom para todos”.

Israel Moura, 39 anos, há três trabalhando com os presos, concorda com o colega. “O projeto tornou a cadeia mais humana, algo muito incrível e de princípio inacreditável para a realidade que a gente vê no Brasil. Por ser cristão, eu, particularmente, sempre, pensei positivo, sempre acreditei que poderia dar certo. Mas muitos companheiros se comprometeram, de princípio, com muitas reservas, pois quem poderia conceber a ideia de que detentos e agentes trabalhando, poderiam se ajudar, mutuamente? “.

O atual diretor Herlano Macieira, 44 anos e 15 de experiência junto ao sistema prisional, avalia com otimismo o futuro do projeto. “Vejo que a grande diferença, a grande preocupação do projeto, é o bem-estar na cadeia, tanto para os internos, pois os eventos procuram, sempre, integrar os encarcerados, aproximando-os de suas famílias e reconstruindo-os como pessoas para a vida”.

Herlano e o atual diretor adjunto, Dênis, dão continuidade ao trabalho iniciado por Keydna Carneiro. No desenrolar do projeto, os presos das vivências pacificadas passam por aprendizados diversos, palestras e participam de grupos de orações durante todo o dia. “Ocupamos o tempo e o pensamento deles. Isso é um ponto muito importante”.



Cursos, palestras e página na Internet – Com página na Internet para transmissões em tempo real de eventos que acontecem dentro do presídio, o projeto Renascer ficou conhecido em todo o País. O programa de autoadministração dos detentos e a aproximação e respeito entre a administração e o ´cárcere´ foram observados como os maiores diferenciais.

“Pautada na mudança de postura dos internos, a administração passou a investir na autoestima dos custodiados e no incremento da confiança entre as quatro ´colunas´ da cadeia: direção, agentes penitenciários, funcionários interdisciplinares e a massa carcerária”, conta Keydna.

Desde 2009, quando foi criado, o projeto já promoveu cursos Shows Gospel, festas de Páscoa, dia das crianças, palestras e oficinas variadas – como a de culinária, concerto e até Cursos de Inteligência Emocional com Coaching internacional e Teologia profissionalizante. “Tudo isto, vislumbrando o condicionamento de uma nova formação psicossocial do individuo encarcerado, preparando-o para uma vida diferente, quando de seu retorno ao convívio com a sociedade, após a vida ´intramuros´”, destaca a idealizadora do projeto Renascer.

Calmaria – Os resultados também refletem na redução de rebeliões e fugas naquela unidade prisional. “Fazemos com que os presos que não reconheceram sua conduta social delitiva e que, continuam, dentro do cárcere, promovendo desordem, fiquem cada vez mais expostos em pavilhões menores e menos fortes, fadados a extinção”, explica.

O projeto foi crescendo e no que Keydna chama de “explosão demográfica do bem”, conquistou centenas de adeptos, que se tornam multiplicadores.

Para ela, as conquistas de novos pavilhões foram, sempre, decorrentes do rechaço de ocorrências delitivas dos presos de mau comportamento, que motivaram eventos criminosos como, fugas, princípios de motins. “Ou seja, a cada exposição do mal, perdia-se o território com avanço do bem. Os detentos que fazem parte do projeto se sentem mais fortalecidos e restabelecem o poder duma forma positiva”.

Queremos que eles sejam melhores

A oportunidade, para um jornalista, de circular sem escolta policial dentro de um presídio é singular. Todos os momentos em que estive com minha equipe dentro da CPPL II foram de observação constante, percepção de uma realidade que poucos têm a chance de conhecer. Sou repórter de Polícia há 14 anos, conheço a criminalidade e os que dela vivem, mas tenho que admitir. Alguma coisa mudou naqueles homens .

Enxerguei, na verdade, a esperança de uma mudança real. O projeto Renascer seria um sucesso absoluto se não fosse por um único detalhe: a falta de uma continuidade aqui fora. Um ´braço´ que desse o suporte aos ex-detentos com chances de trabalho, acesso ao estudo. É importante uma ação rápida neste sentido.

Ainda há quem discurse: “Preso não tem que ser bem tratado, tem é que sofrer”. Para estes, a lembrança de que não temos prisão perpétua ou pena de morte no Brasil. E estes homens que hoje estão abarrotando o sistema penitenciário, um dia, vão voltar às ruas, andar lado a lado conosco, com os nossos filhos. É por isso que queremos que eles sejam pessoas melhores”
 
NATHÁLIA LOBO
SUBEDITORA DE POLÍCIA