Saiu na imprensa: Projeto pacifica presídio do Ceará

21 de março de 2011 - 03:00

Matéria do Diário do Nordeste destaca o projeto Renascer que já pacificou quatro das seis vivências da CPPL II, em Itaitinga

Tarde de domingo na Casa de Custódia Professor Clodoaldo Pinto, a CPPL II, em Itaitinga, Região Metropolitana de Fortaleza. Do corredor para as vivências, já pode-se ouvir a música, as palmas. Na quadra onde tomam banho de sol, centenas de detentos acompanhados das mães ou esposas – porque é dia de visita na penitenciária – cantam louvores, entoado por um pastor que também é detento. A cena lembra qualquer outro lugar, remete à alegria, à liberdade. Em nada se parece com um presídio.

Aqueles homens que estão ali foram presos porque praticaram assaltos, furtos, venderam drogas, sequestraram ou mataram alguém. Mas estão sem algemas, vestidos com a farda da unidade prisional, circulando tranquilos entre as vivências A, B e C, olham nos olhos dos visitantes e sorriem. “Aqui nos respeitamos e respeitamos a mulher do outro porque queremos, porque somos homens melhores. Não respeitamos por obrigação, porque faz parte de um mandamento do presídio”, explica Raimundo Nonato Maciel Passos, 32, que está na CPPL há 11 meses depois de se envolver em um assalto.

Antes, Nonato passou cinco anos no Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira I (IPPOO), que agora virou Colônia Agrícola. “Conheci os dois lados da vida na cadeia. Vi gente morrer, trucidar, ser trucidada. Vi rebelião, droga, gente perdida”, lembra. A entrevista é interrompida por outro detento, perguntando detalhes da organização de uma peça teatral. “Ah, é. Agora me dá licença porque estou organizando os meninos para o teatro que preparamos para vocês”, diz Nonato, e sai com a prancheta na mão para colocar os personagens em seus lugares. Quando se afasta um pouco da equipe, ele volta atrás. “Só quero acrescentar uma coisa. Preferimos que chamem a unidade aqui de casa de recuperação, porque é assim que a gente vê o lugar em que estamos”, e retoma sua atividade de coordenação do grupo teatral.

Alma – Quando tomaram conhecimento, pela então diretora Keydna Carneiro, de que receberiam a visita de uma equipe de reportagem, os detentos organizaram uma peça de teatro. Os ensaios duraram um mês, tempo necessário para o trâmite legal da autorização de entrada e permanência da equipe na CPPL II. Enquanto o acordo com a Secretaria de Justiça (Sejus) era selado, os 10 homens que se dedicavam aos ensaios pediam à diretora alguns acessórios para a encenação. “Consegui martelo de brinquedo, pistola d´água, camisas com as inscrições que eles solicitaram. O grupo estava empolgado com a ideia de mostrar ao mundo o que está aprendendo aqui”, destaca Keydna.

Plateia cheia. Mães, esposas, companheiras dos detentos não tiravam os olhos dos atores. “Senhor do martelo: leiloando uma alma” era o nome do espetáculo, que começou sob o sol quente das três horas da tarde. “Não tem problema, somos fortes, estamos animados”, disse um dos atores.

Realidade – Seis personagens representaram realidades que a maioria dos homens que estavam ali já conheceram de perto: álcool, drogas, prostituição, riqueza e fama, crime e a morte. Um dos presos era a ´alma´, que foi leiloada pelo juiz – o senhor do martelo. O lance inicial do leilão era de 10 centavos, expressando a desvalorização do ser humano.

Logo num dos primeiros momentos da peça, o ´álcool´ ofereceu R$100 mil pela ´alma´. “Eu destruirei muitas vidas”, avisava. A ´droga´, também fez sua oferta. “Dou R$1 milhão por ela. Estou destruindo muitos lares, famílias”, disse. O ator se dirigiu às mães e esposas presentes e disse: “Por minha causa, seus filhos já empenharam botijões de gás, venderam celulares, eletrodomésticos, levaram sua casa à desgraça”.

Fé – E nos momentos seguintes, outras ofertas foram feitas pela ´prostituição´, pelo ´crime´, ´riqueza e fama´ e pela ´morte´, enfim.

Mas o final tinha que ser feliz. A ´alma´ foi resgatada por Jesus Cristo, pela fé que transformou o grupo. Era difícil não observar a emoção entre os presentes. Faltavam poucos minutos para as visitantes terem que deixar a unidade. Todos se deram as mãos, fizeram uma oração e gritaram juntos. “A vitória é nossa”, era o grito de guerra. E após o momento especial, as visitantes despediram-se em meio a abraços apertados e lágrimas. Até a próxima visita.

Presos cultivam amizade e respeito

O sentimento de amizade e o respeito pela coletividade são valores inspirados naquelas quatro vivências já pacificadas. Os detentos se relacionam com os outros com respeito e fiscalizam a obediência de algumas regras, criadas por eles mesmos. “Cigarro, droga, bebida não entram aqui. Ficamos todos ´limpos´”, destaca Carlos Eduardo Ferreira Nunes, 25, que foi preso por envolvimento em sequestro.

Acompanhado da esposa, Ana Célia, ele conta que está preso pela terceira vez. “Mas é a primeira vez que estou aqui, vivendo essa experiência diferente. Eu fazia parte do outro lado da CPPL, a ´Babilônia´. E quis mudar. Vim pra cá e agora prego para aqueles que ainda não se encontraram”, conta. A sensação, para Carlos Eduardo, “é a de ser livre, apesar de estar preso”.

Alegria – Já no portão de saída da vivência, Ana Célia sente o coração apertado. “O que está acontecendo aqui, com meu marido, é uma bênção. Vivíamos juntos há muitos anos mas só quando veio para cá eles quis oficializar nosso casamento. Casamos aqui. É esse homem que espero voltar para o nosso lar, para termos a nossa família feliz de novo”, diz.

São 702 presos que ocupam as quatro vivências pacificadas (de seis que existem no presídio). Não há mau cheiro, sujeira nas celas, que são o lugar comum dos cárceres. No lugar disso, o ambiente transpira ordem. “Os próprios detentos se organizam e controlam os acessos entre as vivências. Existem pastores, obreiros, secretários. Cada um desenvolve uma função pela manutenção da ordem e sossego”, explica Kildare, braço direito de Keydna, idealizadora do projeto.

No momento em que pacificar é palavra de ordem, a pacificação acontece ´de dentro para fora´ da unidade penitenciária. A consciência do processo de mudança vem do próprio detento. “Eu tenho a consciência de que pratiquei o mal, fiz maldade com as pessoas. Não enxergava a minha capacidade de ser bom, praticar o bem e de amar ao próximo. Aprendi a valorizar as coisas importantes da vida”, relata Jean Carlos, 18, preso há 10 meses por tráfico de drogas e porte ilegal de arma, sob o olhar carinhoso da mãe, Francisca Celidan Lobo Lima. “Eu sou muito feliz agora. Senti uma mudança muito grande no meu filho e dou todo o apoio que ele precisar para permanecer assim. Sei que meu apoio é importante neste momento em que ele está aprendendo, querendo melhorar”, orgulha-se.

Cursos – Para Socorro Sousa da Silva, mãe do detento Ezequiel Custódio Batista Júnior, 21, a oportunidade de aprender tem sido uma das maiores realizações para o filho. “Aqui ele está bem melhor do que estava lá fora. Faz cursos, aprende coisas novas e que podem servir para a vida dele”, avalia, orgulhosa, olhando para o filho.

Reconhecer – Ezequiel tem 21 anos e está na CPPL há nove meses pela prática de um assalto. “Outra coisa que a gente aprende aqui é a reconhecer que errou e querer acertar. Ninguém tem vergonha de assumir o que fez porque isso faz parte de ser um novo homem”, acrescenta o detento.

“Difícil se regenerar no meio do joio”

O projeto Renascer começou com um grupo de seis detentos, logo passou para 30 e hoje conta com mais de 700 participantes. De uma população carcerária de 1.130 presos, atualmente, a maioria na CPPL II é de ocupantes de alas pacificadas. Cada vivência ´adotada´ pelo projeto Renascer conta com aproximadamente 200 detentos, ficando sete ou oito por cela. Ainda há superlotação, problema comum no sistema penitenciário.

Elton Ribeiro de Freitas, diretor dos obreiros de uma das vivências, conta que passou cinco anos no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS) antes de vivenciar a experiência na CPPL. “No mundo, cometi assaltos e outros delitos. No penal (IPPS), presenciei rebeliões, mortes, vi a desgraça de perto. Agora conheci a paz. Minha pena já foi toda cumprida, espero apenas que a Justiça faça sua parte, agora. Mas aguardo sem angústia, sem raiva no coração”, revela.

A missão, reconhece Elton, é “libertar outras pessoas do ódio, do desamor. Vivo hoje entre homens transformados pelo poder da fé. Quando sair daqui, desejo permanecer nesta obra missionária”.

Antônio Marcos dos Santos também está na CPPL II depois de ter enfrentado 17 anos no IPPS. “Às vezes o detento tem vontade de se regenerar, mas está no meio do ´joio´. Aqui encontrei a chance de ser diferente, de ser o trigo. Ainda que preso, me considero feliz”.

O projeto Renascer alimenta uma rádio livre e uma página na Internet. “Somos pioneiros no Brasil. Divulgamos eventos de dentro do presídio para todo o mundo. É muito bom saber que as pessoas podem conhecer o nosso trabalho assim, em tempo real. E podem se emocionar junto conosco”, avalia Keydna.